Share

domingo, março 02, 2014

Livro | A Última Dor - Capitulo 3



Todos os capítulos estão nesse link



Meu sonho foi estranho... Começou tão agradável...! Estávamos em uma praia de Copacabana, meus pais e eu. Todos felizes e sorrindo. Meu pai estava cantando a “minha música”, no meu coração você sempre vai estar de Ed Motta – desde pequena ele a cantava para mim na hora de dormir. O dia estava lindo e ensolarado, todos estavam alegres e de repente uma tempestade se aproximou bruscamente da praia. Minha família estava alguns passos na minha frente. Corri até eles, mas eu nunca chegava. Eu gritava, gritava, mas eles não ouviam. Corri mais, o mais rápido que pude. Eu estava com medo. A tempestade estava feroz. As árvores na encosta da praia foram arrancadas. O mar estava violento... Finalmente eu os alcancei. Coloquei a mão no ombro do meu pai e o virei, mas já não era o meu pai de antes. Agora ele estava com o rosto coberto de sangue cheio de fragmentos de vidros alojados em seu corpo e cortes profundos. Os olhos estavam revirados e seu corpo caiu imóvel no chão. Desesperei-me. Virei minha mãe e ela estava no mesmo estado. Agora só tinham corpos no chão. Corpos ensangüentados e sem vida... A praia e a tempestade haviam sido consumidas por uma escuridão, não havia mais nada, em lugar nenhum. Os corpos desapareceram engolidos junto. Eu estava sozinha na escuridão. O desespero cresceu e fechou minha garganta. Eu gritava inutilmente por ajuda. Meu coração estava acelerado e eu estava morrendo de medo, medo de todo aquele silêncio, da solidão, medo e desespero...

Finalmente, acordei – saltei sentada seria mais específico – continuando o último grito do meu sonho. Eu estava em choque, transpirando, meu coração acelerado, minha respiração descontrolada... Eu abracei meus joelhos e permaneci sentada por um tempo. Comecei a chorar descontroladamente – torcendo para que minha avó não ouvisse. Aos poucos controlei minha respiração "Só um sonho... É só um sonho..." repeti várias vezes mentalmente "Só um sonho... Um sonho que vai te atormentar para sempre!".
Não adiantava nada ficar parada sentindo pena de mim mesma. Dei um longo suspiro e enxuguei as lágrimas "Tente esquecer Liza, esqueça a dor!". Aos poucos, consegui controlar minha respiração e deitei de novo esperando o sono voltar, rezando para que o pesadelo não voltasse nunca mais!
Depois de um tempo, percebi que o sono não viria – era de se esperar, considerando o choque que o pesadelo me causou. Olhei para o relógio que estava ao lado da cama.
- 06h38min... Muito cedo!
Olhei para a janela, ainda estava escuro. Já que eu não conseguiria dormir era melhor levantar. . Lentamente levantei-me, espreguicei-me, e fui para o banheiro. Escovei os dentes, penteei o cabelo e desci para a cozinha. Minha avó deveria estar dormindo. Resolvi fazer o café da manhã para matar tempo, mas desanimei quando cheguei à cozinha.
Em cima da bancada, estava um pequeno conjunto de coisas para o café da manhã, pão, leite, chá, geléia, margarina, e bananas com aveia... “Tudo isso para mim?” Antes eu teria comido tudo sem pestanejar, mas devido aos acontecimentos (e a falha no meu organismo) eu não ia conseguir digerir tudo aquilo. O fato de ela não estar comigo, não ajudava. Por falar nisso... Onde ela estava? Foi quando percebi o bilhete que estava perto dos alimentos. A letra era graciosa e firme, o bilhete dizia:

Eliza, precisei resolver uns problemas, achei que você não gostaria de vir comigo, por isso não te acordei.
Saboreie seu café, pode comer o que quiser da geladeira, seu almoço está no forno de microondas.
Volto ao anoitecer, estarei em casa na hora do jantar,
Pode usar o computador da biblioteca se quiser.
Se precisar me ligue, o número está ao lado do telefone.
PS: Procure não sair de casa, não quero ter que mandar os bombeiros para te procurarem!”

Ela tinha razão! Provavelmente me perderia, mas o que eu iria fazer o dia todo? Eram apenas sete da manhã, eu tinha o dia pela frente e um tédio enorme se aproximando!
Resolvi começar do começo. Pelas opções que ela me ofereceu, primeiro o café. Bom, eu não ia nem tentar comer tudo – deixaria esse esforço para o almoço – optei pelo chá, fiz uma xícara e tomei um gole.
- Erva doce!
Bem, meu estômago aceitou o chá, então resolvi forçar um pouco e comi uma fatia de pão com geléia, mas ele (o estômago) não queria. Senti que se eu o forçasse me devolveria tudo, então era o suficiente! Peguei a xícara de chá e andei pela casa, fui do térreo ao sótão, entrei em cada cômodo – menos no quarto da minha avó.
A casa era bem espaçosa e equipada. No segundo andar havia quatro cômodos, dois de cada lado, um de frente para o outro. Um era meu quarto, o outro o da minha avó, do outro lado um era a biblioteca e o outro estava trancado.
Fui para a biblioteca. Era ampla com centenas de livros, no centro inferior tinha uma escrivaninha antiga, mas conservada, semi nova eu diria. Nela tinha um computador até moderno, uma impressora a laser e do lado da escrivaninha uma foto-copiadora. Era uma combinação de modernidade e antiguidade agradável.
Sentei na enorme poltrona e liguei o computador. 
Entrei no chat. Não havia ninguém on-line, Minimizei a tela e fui ver meus e-mails. Tinha vários dos meus amigos – mandados em segredo da minha psicóloga –, todos preocupados e cheios de saudade. Respondi um por um com uma atenção desnecessária – tudo para matar o tempo. Alegrou-me o fato de que eles se importavam comigo, mas cada e-mail me trouxe uma dor diferente, alguns saudade, outros tristeza, desanimo... "Parece que Dra. Fisher tem razão!" Manter contato com eles só me fazia sentir pior, sabendo que eu nunca mais os veria... – minha avó deixou bem claro que eu não voltaria para o Brasil – “Esse país é muito primitivo, não tem leis nem justiça, não botaremos mais os pés aqui!" Ela realmente odiava o Brasil!
O melhor seria seguir o conselho – ou melhor, a ordem – da Dra. Fisher e não manter contato com eles. Só estava me fazendo mal. Eu só poderia rever algum deles depois que fizesse 18, e até lá, eu não ia sofrer mais – já tinha muito sofrimento na minha lista,
Depois de responder os e-mails, já estava pronta para apagar minha conta definitivamente no chatquando alguém entrou, minha companheira de classe Cintia. Ia puxar conversa, mas ela o fez primeiro.
Cintia diz:
O q aconteceu c/ vc??? :-(
Liza diz:
O q vc qer dizer?? ^o) Além do óbvio? O.o
Cintia diz:
Sim, além do acidente!! Vc sumiu e ñ deu notícias :-@
Eu não tinha me dado conta de que não ficava on-line desde o acidente. Fiquei semanas em órbita! Não sabia o que responder. Nesse instante entraram mais dois, minha melhor amiga Carla e o Bruno um paquera antigo – mas nunca rolou nada. Decidi compartilhar a conversa assim só escreveria uma vez.
Carla diz:
Liza, o q ouve??
Bruno diz:
Qual é a daqela psicólogo maluca?? ¬¬
Cintia diz:
Não te deram acesso a um computador?? :-p
Liza diz:
Calma gente eu to bem!! :-) ñ deu p/ me comunicar depois do... vcs sabem!
  sinto muito ter preocupado vcs! eu to bem! s:-) 
Carla diz:
Eu sinto muito pelo q aconteceu :-(
Bruno diz:
Eu tbm! mó raiva daqela pisicólogo!!!
Liza diz:
Tudo bem gente ñ foi culpa de ningém!! E ela tinha razão Bru!! :-/
Bruno diz:
O que vc qer dizer? O.o
Carla diz:
É o q vc ta dizendo? q ñ qer ve agente? :-@
Cintia diz:
Onde vc tá??
Liza diz:
Calma gente!! 1 de cada vez! :-) eu to em Santa Rosa próxima de San Francisco! E... vcs naum deviam ta na aula ;-)?
Bruno diz:
E tamos!!
Cintia diz:
Aula de informática! s:-)
Carla diz:
E como é ai?? Igual nos filmes??
Liza diz:
Ñ dá pra saber ainda eu só vi o avião, o carro, e a casa! + eu daria tudo p ta ai c/ vcs!
Bruno diz:
Agente sabe! vc nos ama! :-p
Liza:
Bru vc é um bobão!
Bruno diz:
Vc num respondeu minha pergunta lembra?=^.^=
Carla diz:
O q vc disse sobre a psicólogo estar certa?
O que eu podia dizer? O certo seria ser grossa para que nunca mais quisessem falar comigo, mas já bastava eu sofrer, eles não tinham que passar pela mesma coisa. Meus dedos tremeram sob o teclado, só em pesar no que eu teria que escrever! Mas apenas lendo as mensagens instantâneas dos meus amigos o meu coração se enchia de dor – não tão forte quanto às lembranças do acidente me traziam, mesmo assim ruins o bastante para não conseguir suportar.
Cintia diz:
Liza? vc ta ai??
Optei pela verdade e esperava que fosse suficiente!
Liza diz:
Vcs ñ entendem! Ta muito difícil suportar a dor da perda q eu sofri, meus pais, minha casa, meu país... Vcs... É muito doloroso e fica mais difícil quando falo c/ vcs, a saudade me corróe como ácido e só alimenta uma falsa esperança! Eu ñ posso + passar por isso, ñ vou consegui agüentar! Eu sinto muito, espero q entendam, eu amo vcs, mas ñ agüento + sofrer!!
Ouve uma longa pausa depois que eu enviei a mensagem. Esperei calmamente a resposta.
Cintia diz:
É a ultima vez q nos falamos??? O.O
Liza diz:
É sim, sinto muito!!
Bruno diz:
Vamos sentir sua falta!
Liza diz:
Eu tbm!
Carla diz:
Nós te amamos Liza!
Liza diz:
Tbm amo vcs!
Lagrimas escorriam dos meus olhos. Dizer adeus era mais difícil do que eu pensava!
 Fechei a conversa e exclui minha conta permanentemente. Uma nova dor me invadia! Era pior dizer adeus e saber que poderia estar ao lado deles, mas era melhor assim... Engoli o choro e coloquei essa nova dor junto com a outra – agora elas seriam companheiras.
Desliguei o computador e sai da biblioteca. Não tinha idéia do que fazer, mas precisava me ocupar de alguma forma ou voltaria a pensar nisso e eu certamente não iria ser bom!
Meu chá já estava frio quando cheguei à cozinha. Olhei o grande relógio que estava pendurado na parede. Não passava de 08h30min "A despedida on-line durou menos do que eu pensei!" Não era o bastante, ainda tinha quase doze horas para matar.
Na esperança inútil de prolongar meu tempo, guardei os alimentos do café. Um a um fui descobrindo onde colocá-los. Levei um pequeno susto quando abri a geladeira para guardar a margarina. Estava repleta de guloseimas, porcaria, doces, tortas, bolos... Uma verdadeira festa para o paladar – e eu com passagem livre para comer tudo – a alegria de qualquer adolescente! De qualquer um, menos dessa adolescente aqui! "Droga de falta de apetite, esta me dando nos nervos!"
Fechei a geladeira, com um pouco mais de força que o necessário. A caminho da sala, parei a um lindo pote de vidro que estava sob uma mesinha, nele continha muitos bombons e trufas de vários sabores "Será que você ainda aceita chocolate?" Perguntei – mentalmente – para meu estômago. Sempre fui "chocólatra" e isso não podia mudar. Peguei quatro de uma vez só e me joguei no enorme sofá branco. Zapeei pelos canais procurando algo que eu reconhecesse enquanto devorava os bombons lentamente – de novo levou o dobro do tempo que eu levaria – mas pelo menos meu estômago não tentou devolvê-lo "Bom! Umas calorias a mais para compensar as do café!".
Não encontrei nem um programa que valesse a pena assistir. Procurei entres os filmes em DVD, mas minha avó gostava de clássicos, o mais recente deles era Titanic - que eu já vi umas doze vezes. Eu poderia colocar um assim mesmo, mas não ia me adiantar nada. Se eu não me concentrasse, minha mente ia vagar entre dores, lembranças e saudades, e isso era o que eu estava evitando. Toda essa analogia me consumiu apenas uma hora "Merda! O que eu vou fazer agora?".
Foi quando me lembrei do que minha avó disse sobre as tintas para o meu quarto estar na garagem. Não tinha nenhuma idéia para passar o tempo mesmo, por que não bisbilhotar? Cheguei à garagem e encontrei as tintas facilmente. Com a ajuda de uma chave de fenda abri a tampa, no mesmo instante me encantei com a imagem do quarto pintado.
A primeira lata era de roxo bebê – ou lilás, como acharem melhor – e a segunda era de rosa no mesmo tom de bebê. Eu não teria escolhido outras cores se pudesse "Muito obrigada vó, acertou em cheio!".
Eu estava tão ansiosa para que elas fossem usadas que pintaria eu mesmo... "Por que não?"
Realmente não sei o que me deu! Um espasmo repentino talvez. Movi-me por impulso. Não teria problemas com isso. No Brasil meu pai e eu pintamos o meu quarto. Ele ensinou-me cada passo e eu poderia fazer sozinha.
Perto das latas estava todo material necessário – pincel, rolo, forro – que havia sido comprado para os pintores. Isso me consumiria o dia inteiro "Perfeito!".
Aos poucos subi com o material, troquei de roupa e coloquei o macacão branco que estava junto. Empurrei os poucos móveis para o centro do quarto – não pegaram nenhum espaço – e os cobri com o forro. Tomei cada medida necessária para a pintura, cada detalhe – não queria dá motivos para minha avó achar que fiz besteira.
Peguei meu Ipod e selecionei as musicas no auto-falante. Auto o suficiente para ouvir do térreo e baixo o bastante para não incomodar a vizinhança – a casa mais próxima ficava a seis metros. Claro que 90% das minhas músicas eram de bandas brasileiras – NX zero, Fresno, Pitty, Vanessa Camargo, CPM 22, Charlie Brown Jr... No fundo eu queria mesmo que um vizinho passasse na frente da casa e absorvesse um pouco de musica de verdade.
“Acho que estou ficando patriota e paranóica!”
Com tudo preparado comecei! Não demorou, para que eu me empolgasse. Dancei e cantei cada música enquanto deslizava o pincel. Uma hora e meia depois o quarto estava pronto. Abri a janela para que o ar secasse a tinta mais rápido. Enrolei um pouco no térreo – assisti ao canal de esportes por que era a única coisa que não mudava (homens atrás de uma bola, sempre serão homens atrás de uma bola) – e voltei para a segunda demão, que me consumiu mais uma hora.
Já passava de meio dia quando o quarto ficou pronto – estava melhor do eu pensei que ficaria – com o acabamento todo profissional. Usei o lilás como base e a tinta rosa para fazer pinturas em estêncil de borboletas e outras desenhos tribais.
A essa altura eu estava ouvindo pela segunda vez a lista de músicas, mas eu não me importava, estava tão bom... A sensação era calorosa, não machucava como as que eu havia sentido desde o acidente. Era um espasmo de energia e empolgação. Não sei se foi o fato de me ocupar com algo útil, o de estar com a mente ocupada ou o fato de estar ouvindo as músicas do meu país, talvez a junção dos três, não importa, eles tinham me causado umas poucas horas sem dor! Era tão bom não me sentir mal, era tão bom não sentir a dor. Eu não descreveria isso como felicidade – porque não seria possível ser feliz de novo – talvez alegria, sim alegria "Quanto tempo faz que não me sentia assim? Estava com saudade"
O quarto estava pronto, tornei a abrir a janela e aumentei o volume do Ipod. O espasmo de alegria ainda não desaparecera, e torcia para que não se fosse. De repente senti uma rajada de dor. Não qualquer dor, aquela dor, a dor que me corroía desde o acidente, a dor da perda. Rapidamente o espasmo deu lugar a ela, levando consigo qualquer paz que tinha me causado. Meus olhos se encheram de lágrimas, o meu peito ardia novamente e uma voz falava na minha cabeça, era minha voz, mas não era eu – por que eu não diria algo que me ferisse – era uma voz brava, como se o acidente tivesse adquirido uma voz própria... "Como você pode estar alegre?... Seus pais estão mortos... Você está sozinha... Por que você está sorrindo? Estão todos mortos... E você deveria estar também!..."
Sentei no chão e encostei-me ao forro que estava cobrindo a cama, abracei os joelhos e escondi a cabeça. Não sei como de repente fui de um espasmo de alegria à agonizada de dor. Tudo voltava, a dor me trazia os flashes do acidente, o desespero, o medo... E agora me trazia as lembranças do sonho – eu disse que me ele me atormentaria!
"Merda! É tão errado tentar não sofrer?” A pergunta foi retórica, mas fazia sentido, será que toda vez que me sentisse alegre, algo me puxaria para o abismo em que eu vivia? Eu já estava cansada de flutuar na escuridão, sem chão, sem uma luz que me guiasse... Mas parecia que ia ser assim de agora em diante, eu era forte o suficiente para aguentar, eu aceitaria isso! Eu era forte! Não era? Deus queira que sim!
Olhei para meu relógio de pulso, ele marcava 14h32min, metade do meu dia tinha ido e isso era ótimo "Mais quatro horas e meia e minha avó estará aqui!" Isso me confortava. Com ela em casa eu me ocuparia mantendo a imagem de moça refinada – qualquer coisa para não pensar na dor.
Suspirei fundo e tomei coragem para levantar a cabeça, dei uma boa olhada nas paredes outra vez... "É lógico! Agora eu entendo... As cores, rosa e lilás as cores preferidas da mamãe! Talvez Dona Catherine não tenha tido tanto problemas para escolher as cores!". Por isso que me senti tão mal repentinamente, voltei minha atenção para as músicas... “Harg! A musica! Ed Motta!” A música que meu pai cantava! Na hora me subiu uma raiva, desliguei o som e deletei a música, ia jogá-lo longe, mas seria um desperdício se quebrasse!
Eu estava enlouquecendo. Isso era paranóia. Eram só cores, era só uma música – minha música favorita – que eu teria que baixar de novo.
Respirei fundo novamente – isso estava se tornando hábito – e me refiz. A dor não se foi, mas eu já estava me acostumando à angústia. Levantei e concentrei-me. Liguei novamente o Ipod – dessa vez no fone – e comecei a mexer nos móveis.
Não dava pra colocar no lugar – encostados na parede – então só tirei do centro e os aproximei das paredes. Guardei os materiais de pintura e deixei tudo arrumado. Quando fui fechar a janela, vi umas caixas no jardim – entregues pelo correio – umas sete caixas cheias de carimbos de viagem.
- Minhas coisas!
Que ótimo! Colocar os móveis no lugar tinha finalizado meu passatempo, agora com as minhas coisas lá em baixo eu perderia um bom tempo fuçando nelas.
Desci correndo até a porta, mas parei na maçaneta, tinha um espelho próximo e pude ver como eu estava horrível, de macacão branco, suja de tinta, com rabo de cavalo meio desmanchado. Seria prudente uma garota sair daquele jeito? Era só alguns metros até as caixas, mas alguém poderia me ver e... “Ah quem se importa?”
- Se liga garota! Ninguém se importa com você! – falei para mim mesma.
Deixei de lenga lenga e fui pegar as caixas. Aos poucos levei uma a uma para a garagem. Não olhei em volta para saber se alguém estava vendo – não me interessava –, mas tive uma forte (quase enorme) sensação de que alguém me observava.
Com as caixas na garagem pude fuçar nos meus objetos. Claro que a maioria me lembrava meus pais, já que eles me presentearam com boa parte de ursinhos, acessórios, porta-treco, porta-jóias... E tudo que me trazia a lembrança (e a saudade imensa) deles, de certo modo eu não ligava, e mesmo assim, acostumar-se não é supor.
Alguns objetos eu levei para o quarto, outros permaneceram guardados, não tinha mais nada a fazer – em relação ao quarto – então tomei um banho e coloquei roupas limpas - uma calça jeans e uma blusa. Foi aí que lembrei.
- Eu não almocei...!
Droga! Tinha esquecido, e sem a ajuda do meu relógio intestinal ficava difícil! Não perdi tempo. Corri para o microondas e esquentei meu almoço. O prato continha macarrão com almôndegas, rosbife grelhado e batatas fritas. Lentamente comi 2/3 até meu estomago reagir estranhamente.
Minha boca começou a salivar com um gosto estranho juntamente veio um impulso do estômago. Pelo sim, pelo não, corri para o banheiro. Só tive tempo para chegar ao vaso. Vomitei o que com tanto esforço tinha conseguido engolir.
Escovei os dentes e voltei pra cozinha. Não conseguia entender o que estava acontecendo comigo. Eu não conseguia comer e quando comia a força, vomitava! Apenas lembrar-se de fazer refeições não ia ser suficiente.
Joguei o que sobrou no lixo. Odeio desperdiçar comida, mas eu não tinha cabeça para pensar nisso. Se me ocupasse e não pensasse na falha de meu organismo, eu ficaria bem. Era nisso que eu queria acreditar!
O resto do tempo eu matei organizando os DVDs em ordem alfabética, os jogos por ordem de jogadores e as revistas por ordem de data "Que merda! De onde veio o perfeccionismo?" Tudo para me manter ocupada, para não pensar na dor, na solidão... Essa paranóia de contar o tempo já estava me enchendo também, logo eu atacaria meu relógio pela janela.
Quando me entreguei ao tédio, liguei novamente no canal de esportes e joguei-me no sofá.
Finalmente minha avó chegou. Era umas 18h30min – não olhei dessa vez – trazendo consigo muitas sacolas, uma delas com nosso jantar, as outras continham livros, cadernos, estojos, e muitos outros materiais de escola.
- Aqui tem tanta coisa, é tudo necessário? – perguntei quando ela me mostrou.
- É claro, você vai ver como o ensino aqui é puxado!
Ótimo era o que eu precisava!
- Não vai perguntar o que fiz o dia todo? – ela perguntou.
- Eu não queria ser inconveniente, mas estou curiosa! – menti descaradamente.
- Bom eu fui fazer sua matricula no Piner High School, comprei os materiais e encomendei seus móveis!
"Uol! Como ela é eficiente!"
- Meus móveis?
- Sim! Ou você achou que ficaria apenas com aqueles “móveisinhos”? Os pintores chegam de manhã, e os móveis de tarde. Sábado já vai estar pronto!
- Hã... Vó... Na verdade pode cancelar os pintores. Fiquei meio entediada e fiz a pintura eu mesma, e por sinal adorei as cores... – menti de novo.
- Espera! Você fez a pintura? – ela estava chocada.
- É, aprendi com meu pai, o resultado foi ótimo...
Ela não acreditou, mas por fim deu de ombros. E eu ignorei o nariz torcido dela ao ouvir sobre meu pai.
- Bom, se você gostou... Vai nos poupar tempo! Suas coisas já chegaram do correio?
- Já sim, estão na garagem!
- Espero que tenha se divertido hoje...
“Foi um dos dias mais entediantes e piores que já tive!”
- Oh, claro foi... Animador!
Sei que menti descaradamente (de novo), mas a idéia era fazê-la sentir-se melhor.
Ficamos acertando os detalhes da minha nova vida. Ficou combinado que ela me daria uma mesada de 50 dólares por semana. Tentei argumentar e dizer que queria trabalhar, mas ela descartou qualquer esperança minha "Nem pensar, já vai ser difícil para você se acostumar com o ensino, não quero que você perca o ano por não ter tempo de estudar!". Ela tinha razão, e discutir com ela não adiantaria mesmo. Simplesmente me conformei – por enquanto – para o bem da nossa convivência. Ela também me entregou um celular – nem moderno, nem ultrapassado – útil demais para mim, para que pudesse me encontrar se eu me perdesse.
Depois do meu jantar forçado – que ficou mais fácil tendo que manter a compostura diante da minha avó – dei-lhe boa noite e subi para o quarto com meus materiais, dando graças a Deus por ter conseguido segurar o jantar no estômago.
 Coloquei tudo no closet. Enrolei um tempo lendo, outro escrevendo, outro desenhado... E finalmente dormi rezando para que meu sonho não se repetisse. Claro que não adiantou, tive o mesmo sonho, com a mesma intensidade, com a mesma dor, acordei no mesmo desespero, sob as mesmas lágrimas... O mesmo terror! Mas dessa vez procurei abafar meus gritos para não acordar minha avó...

 

Todos os capítulos estão nesse link.

Nenhum comentário:

Postar um comentário