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quarta-feira, maio 08, 2013

Livro | A Última Dor - Capitulo 1



- Vamos começar querida?
Penso: “Me chama de querida de novo, e eu pulo no seu pescoço!”
Respondo:
- Claro Dra. Fisher!
- Bom, comece falando de você...
“Para quê? Você sabe tudo que tem para saber!”
- Como devo começar?
- Como achar que deve – ela apertou um pouco os olhos e fixou-os em mim – Com o que considerar importante.
Seguiu-se um silêncio. Ela continuava a me encarar. Isso era agonizante...
- Bom... – decidi começar – Meu nome é Elizabeth Roosevelt. Tenho 16 anos. Sou brasileira. Moro em Copacabana, Rio de Janeiro. E... Sei lá...!
- Continue querida... É só dizer o que passar pela sua cabeça, seus sentimentos... É fácil...!
“Seria, se você parasse de me encarar com esses olhos minúsculos como se eu fosse uma psicopata!”
- Dra. Fisher... Isso está me enchendo! É o 5º encontro, e a senhora sempre pede a mesma coisa!
Senti a corrente de ar que passava pelo assustador escritório da Dra. Fisher arrepiar-me.
- Bem querida, se está sendo tão incômodo... Vamos mudar a perspectiva! Vou te fazer perguntas e você se preocupa apenas em respondê-las OK?
“É pra isso que você é paga? Para encher meu saco?”
- Ta! Pode começar!
Infelizmente, agora sei o quanto me arrependo dessas palavras.
A Dra. Fisher é uma mulher asiática, de estatura baixa, olhos minúsculos e maldosos, cabelos “escorridos” – do tipo “a vaca passou a língua” – e curtos. De acordo com sua parede de certificados, se formou em psicologia, é solteira – eu diria encalhada – e para meu desagrado era um tanto... Eu diria “curiosa” e persuasiva.
Não que eu não goste da Dra. Alice Fisher – minha psicóloga – ela até que é legal, mas o fato de me tratar como se eu fosse uma adolescente perturbada... "Você passou uma experiência traumática, por isso vai ser assistida por mim. Não estou dizendo que você está louca querida, apenas quero o melhor pra você!"
As palavras dela no primeiro encontro – ou como temo em mencionar “primeira consulta” – ainda remoem na minha cabeça.
Eu nunca fui a favor de psicólogos. Particularmente nunca precisei de um. Sempre achei perda de tempo e dinheiro (excerto para os doentes mentais, lógico). E agora, estou sentada diante da melhor psicóloga – e a mais cara provavelmente – de Copacabana.
- Elizabeth! Está prestando atenção?
“Nem um pouquinho!” pensei.
- Claro que estou!
- Muito bem... – continuou ela, explicando as vantagens da nova perspectiva que ela usaria.
Sabe quando você sabe que algo ruim está por vir, mas não acredita realmente que vá acontecer? Pois bem, eu sabia por que tinha ido até aquele consultório, sabia qual seria o assunto, e mesmo após tantas consultas, ainda queria acreditar que ela me pouparia disso...
- Elizabeth – chamou ela – por que não me diz como andam as coisas com você?
- Hamm... – hesitei em responder – Está indo...
- Como vai sua relação com seus amigos?
Geralmente, nas outras consultas, ela deixava que eu falasse neles primeiro.
- Não como antes, e nem poderia... – murmurei as ultimas palavras mais para mim do que para ela.
- Por que não? – perguntou como se não soubesse a resposta.
- Hamm... Não é a mesma coisa sabe, estamos todos diferentes... – o que quer dizer eu.
Ela pareceu hesitar um pouco, por fim falou:
- Isso é bom de certa forma... Levando em conta o que está acontecendo... Você sabe o que eu quero dizer não sabe?
Veio em minha mente, um flash de imagens que durou apenas um segundo, mas que foi suficiente para trazer de novo aquilo.
- Sei!...
- Acha que vai conseguir lidar com isso?
- A senhora sempre me faz essa pergunta!
- E a senhorita sempre se esquiva dela...
Abaixei a cabeça quase que por instinto.
- Me diga Elizabeth, lembra-se daquela noite?
- Realmente acha que eu conseguiria esquecer? – arfei.
- Então sabe por que está aqui? Sabe o que aconteceu e o que vai acontecer agora?
- Para com isso... – murmurei em baixo tom.
Ela não parou. Eu já podia sentir meu peito ardendo e toda aquela dor latejar. Havia algo de estranho nessa consulta. Por mais irritante que fosse, a Dra. Fisher sempre deixava o caminho aberto para que eu falasse apenas o que me sentia a vontade em falar, mas... Agora ela estava me pressionando... Não era como ela costumava agir... E isso só podia significar que...
- Não acredito! – exclamei – ela não vai mesmo fazer isso vai?
O olhar dela mudou, como se estivesse aliviada em eu ter percebido.
- Sinto muito Elizabeth... Ela não quer esperar mais!
Levantei-me num salto com a notícia.
- Quando? – perguntei encarando-a.
- Amanhã de manhã!
- Não acredito! Vocês tinham me prometido mais tempo!
- Sei disso, mas você a conhece, ela não vai esperar mais!
- Isso não é justo! Sabe o que está fazendo comigo?
Ouve uma pausa e só se podia ouvir o som da minha respiração irregular.
- Sim Elizabeth, sei o que isto vai lhe causar, mas estou de mãos atadas!
- E você ainda se considera uma boa psicóloga?!
- Como disse? – perguntou ela incrédula.
- O que ouviu! Você sabe que é errado o que ela vai fazer e mesmo assim dá a autorização que ela precisa? Sabe que é a pior coisa que podia me acontecer e mesmo assim... Como pode? – me virei e fui em direção a porta, mas hesitei na maçaneta – Como consegue dormir à noite?
- Não consigo... – respondeu – Mas acredite criança... Não há alternativa!
- Imagino se você diz isso ao receber seu contracheque...
Foi a ultima coisa dita antes de eu sair.
Deixei as ultimas palavras dela pairarem no ar do consultório e em minha mente.
Não há alternativa!
Realmente não havia.
Tinham me prometido um mês! E, em uma semana tinham descumprindo a palavra. Logo tudo ficaria para trás!
Senti a luz do sol tocar em meu rosto ao sair do prédio. Aquilo era terrivelmente maravilhoso... Tão familiar e tão bom... E em menos de 24 horas seria extinto da minha vida!
O taxi estava esperando na porta do prédio como ela havia dito. Eu não podia me enfiar naquele carro e seguir. Tinha que aproveitar a ultima vez! Aproveitar a brisa da praia de Copacabana, um dia ensolarado na minha doce praia.
A clinica ficava na Av. Ns. De Copacabana a dois quarteirões da praia, que a alguns quilômetros a esquerda ficava meu condomínio, Edifício South. Dispensei o taxi e fui caminhar na praia. Sentir a areia nos pés, a brisa do mar... Pela ultima vez!  
Você deve estar perguntando, o que eu estava fazendo no consultório dessa doida. E o que está prestes a acontecer comigo. Bom, em menos de 24 horas minha vida vai mudar completamente. Vai se transformar em um inferno! Quem eu quero enganar? Minha vida é um inferno desde daquela noite...

[...]

Duas semanas atrás estávamos voltando de uma viagem de fim de semana, meus pais e eu. Meu pai estava no volante, minha mãe, sentada atrás comigo. Era por volta das 21 horas. Havia chovido e a pista estava molhada... Eu não me lembro de muita coisa, ficaram lacunas na minha memória... Estava tudo tão bem... De repente eu vi um clarão de luz vindo da pista e meu pai se virou bruscamente me encarando nos olhos. Sua expressão... Seu olhar... Ele estava aterrorizado, havia medo, preocupação, desespero em seu olhar... O seu olhar... É uma das últimas coisas que lembro antes de tudo escurecer. Lembro de ter ouvido um forte barulho, uma espécie de estrondo. Algo me apertando, algo que me pareceu quente e depois úmido, como sangue escorrendo pelo meu corpo. Seguido logo depois por um barulho estranho, baixo e então, um impacto forte seguido de dor. Muita dor, vinda de várias direções.
Por mais que tentasse, não conseguia distingui-las. Não conseguia abrir meus olhos. Foi tudo tão rápido e depois... Algo que não sei explicar. Havia uma luz nessa escuridão, e... Bom, nada! Nada que me valha lembrar eu acredito e então, tudo some de novo.
Quando acordei já estava no hospital.
Ainda sentia dor e estava levemente entorpecida. Tinha um médico e uma enfermeira ao meu lado e dois homens engravatados – que depois vim descobrir que eram assistentes sociais. Eles mantinham conversas paralelas sobre a sorte que eu tive e sobre meu caso clínico. Pelo que pude entender, tive uma contusão na cabeça, desloquei o ombro esquerdo, fraturei duas costelas, e tive inúmeras escoriações. Mantiveram-me dopada por analgésico em coma induzido para que eu conseguisse me recuperar. Haviam tirado os medicamentos que me induziam ao coma, mas mantiveram analgésicos fortíssimos para aliviar a dor, mesmo assim, uma leve dor ainda persistia em meu corpo.
O médico fazia perguntas para testar meu raciocínio e de acordo com as respostas que eu dei, estava tudo bem. Ele – Dr. Charles Ribeiro – comentava com os outros da sala meu progresso nos últimos dias.
Quando me enchi das avaliações clínicas e das conversas, fiz a pergunta que aparentemente, ninguém queria responder.
Minha boca estava seca e minha voz parecia que iria falhar, mesmo assim prossegui:
- O... – limpei a garganta surpreendendo-me por ser tão ruim falar – Onde estão meus pais? – meus músculos doíam a cada palavra.
Naquela altura do campeonato, já imaginava que tinha acontecido um acidente. Se eu estava daquele jeito, como eles estavam?
Ninguém respondeu a pergunta, tornei a falar. Minha voz estava fraca e sem forças, se quebrando nas palavras, mas a preocupação em meu coração era maior.
- O.... Onde eles estão? Eles estão bem?
Aquele silêncio... Ouve uma troca de olhares entre o médico e os engravatados.
Tentei me levantar da cama em busca de respostas e me arrependi no mesmo instante! As minhas costas arderam como brasa, a dor que estava fraca intensificou.
Vendo meu gesto, a enfermeira me segurou pelo ombro, impedindo qualquer movimento – desnecessariamente, pois eu não pretendia me mexer de novo.
Eu já estava irritada por todo aquele silêncio. Coloquei o antebraço nos olhos e os fechei com força, desejando que tudo não passasse de um pesadelo.
- O q-que aconteceu? – perguntei sob o fôlego.
Finalmente alguém falou.
- Ouve um acidente... – quem falou foi um dos engravatados.
- Não, ainda não! – o médico interrompeu – Ela precisa se recuperar!
- Ela vai ter que saber cedo ou tarde! – debateu o outro.
- Ainda sim, o estado dela é estável, mas delicado, eu digo que...
- Tudo b-bem... – minha voz estava quase indecifrável, agora que eu lutava contra as lágrimas – pode dizer!
Mantive meu braço no rosto evitando que vissem minha expressão. A enfermeira manteve a mão no meu ombro mais para me consolar do que para me segurar. Agradeci aquele gesto.
- Elizabeth – começou um dos engravatados –, ouve um acidente de carro. Um motorista fez uma ultrapassagem indevida e colidiu com o veículo dos seus pais. A pista estava molhada, o carro derrapou e saiu da estrada caindo em um barranco. Levamos horas para chegar ao local...
- Não é o q-que eu quero saber! – eu o interrompi tentando soar o mais ríspida que conseguir – Como eles estão?
- Eles... – ouve uma longa pausa – Eles não conseguiram... Sinto muito!
As lágrimas que eu tanto lutava, ganharam força e desabei num choro fraco e sem vida, mas discreto. Tinha mais, a saber, naquele instante.
- C-Como...? – eu precisava saber e não era preciso terminar a frase.
- O carro explodiu alguns minutos depois de chegar ao fundo o barranco...
Tudo estava girando. A dor agora queimava com força pelo meu corpo todo. O desespero entalou na minha garganta. Nada fazia sentido. O meu peito ainda estava em brasa. Não havia mais nada a que me segurar.  
Na minha cabeça, surgiam os rostos deles, aquilo me corroeu como ácido mais e mais. A dor física não significava nada comparando ao que senti em meu peito. Tudo tinha desaparecido! Meu chão desapareceu... Senti um começo de vertigem e rezei para que ela não aumentasse.
- Por que eu...? – resolvi dizer algo para não acharem que eu estava entrando em choque, e certamente eu estava – Por que eu estou viva?
Se tinha sido tão horrível, não fazia sentido eu ter sobrevivido. Ouve outra troca de olhares.
- Nós não temos certeza... – continuou o assistente social – É mesmo um mistério, talvez tenha sido sorte...
- Esperávamos que você se lembrasse. Você foi encontrada alguns metros longe do veículo e da explosão! – completou o outro assistente engravatado.
- E... Eu... Não me lembro... – disse entre fracos soluços e lágrimas.
- Bom – falou o mesmo engravatado e o médico não ficou feliz por a conversa ter tomado esse rumo – Pode nos dizer do que consegue se lembrar?
- Eu te disse que ela precisava se recuperar antes que... – bufou o médico para eles.
- Não! Deixa... – por mais que eu quisesse ficar sozinha e chorar pela... Morte dos meus pais, era melhor acabar logo com isso do que ter que revirar depois – Eu estou b-bem, quero falar!
- Tem certeza querida? – a enfermeira persuadiu – não temos pressa!
- Tenho s-sim! – eu me recompus um pouco e finalmente tirei a antebraço do rosto, mas permaneci olhando para cima.
Busquei no fundo de minha mente todos os detalhes que consegui.
Eu lhes contei a mesma história que contei. A única de que me lembrava. Demorou um pouco para colocar as informações no lugar, mas eles realmente não estavam com pressa.
- Isso já era esperado – refletiu o médico – você sofreu uma contusão grave na cabeça, sem contar a experiência traumática, é normal que seu subconsciente se proteja apagando as memórias ruins!
“Meu sub o quê? Protegendo-me como?”
- Explique... – pediram e pensei se só eu não tinha entendido.
- Hamm... Bom as lembranças do acidente, devem ser dolorosas para ela! E seu subconsciente se protege dessa dor, apagando as memórias. Não sou especialista nesse assunto querida – dirigiu-se a mim – certamente você vai querer procurar um depois...
Como imaginei, ele não fazia idéia do que estava falando, mas até que fazia sentido, se estava doendo agora, imagina se eu começar a lembrar? Nesse instante eu não queria saber de mais nada! Manter a compostura estava ficando difícil, eu precisava ficar sozinha! Precisava desabar!
- Há algo mais que v... Vocês queiram saber?
- Bom... – soou a voz do engravatado.
- Não! Nadinha – interrompeu o médico – pode descansar! Durma um pouco, a enfermeira vai lhe aplicar os analgésicos, os outros já vão perder o efeito!
Percebi que não tiraria nenhuma informação deles, nem eles de mim (se houvesse alguma) “Ótimo, fim da conversa!" pensei.
Foi quando me lembrei de um detalhe. Sou filha única. Não tenho tios nem tias, não me lembro de nenhum parente próximo... O que ia acontecer comigo? Um orfanato? Não poderia ser! Meus pais eram bem de vida, tinham economias. Não me deixariam desamparada, deixariam?
- Esperem...! – disse enquanto eles começavam a sair.
Foquei meus olhos na enfermeira que estava aplicando analgésicos na mangueira ligada ao meu braço. Ela me olhou e sorriu. O médico voltou seu olhar para mim. Voltei a encarar o nada, o teto pra ser mais exata.
- O que foi? – perguntou o médico.
- O que vai acontecer comigo? Para onde vou? – o desespero soava na minha voz.
Apesar de focar apenas o teto eu estava ciente de todos no quarto. A enfermeira ao meu lado. O médico a dois paços da minha cama. Os engravatados logo atrás dele, perto da porta que agora estava aberta. Muito bom para alguém que sofreu o que eu sofri, não é? Talvez o meu estado não fosse tão ruim, talvez eu ganhasse alta logo e tentaria seguir com minha vida... (como se isso fosse mesmo acontecer...)
 Finalmente alguém respondeu. Um dos engravatados (não me preocupei em memorizar seus nomes).
- Tudo já foi resolvido! Foi um tanto difícil, considerando que você não tem parentes próximos, conseguimos contato com a sua avó materna...
- Minha a... Avó?
Fiquei chocada. Não me lembrava de ter visto minha avó além de fotos.
- Ela ficou muito abalada – disse o engravatado – e embarcou para o Brasil no mesmo dia! Foi ela quem cuidou do enterro e de todas as outras despesas!
- Onde ela está?
Os assistentes sociais alternavam entre si para responder minhas perguntas. Aparentemente satisfeitos por terem conseguido cumprir seu trabalho.
- Ela está cuidando da papelada sobre a sua guarda legal, mas ela ficou ao seu lado o tempo todo!
“Papelada de guarda? Vou mesmo morar com ela?”
Eu não me lembrava muito da minha avó, Dona Catherine Munro Roosevelt. Viúva residente em Santa Rosa, Califórnia, ao norte de San Francisco EUA. Lembro-me das histórias contadas por minha mãe dizendo que ela não era a favor do romance dos meus pais – porque minha mãe era norte-americana e meu pai brasileiro – mas conforme ela o conheceu melhor, acabou engolindo apesar de não apoiar. Mas quando eles vieram morar no Brasil, ela não manteve contato. Minha mãe não falava muito dela, mas podia-se ver que ela sentia saudades... Quanto a mim... Mal me lembrava de seu rosto...
ESPERA! Se eu vou morar com ela de agora em diante, e ela mora fora do Brasil...
- Eu, eu vou... Deixar o Brasil? – minha voz estava incrédula.
- Sim – a voz do assistente social soou sarcástica – é a única alternativa! A não ser que queira ir para um abrigo!
- Mas e minhas coisas, m... Minhas amigas, m... Meu colégio? – que droga! Por que as palavras tinham que sair quebradas?
- Vai ser difícil, sabemos! – ele olhava fixamente em mim tentando passar sentimento – Mas você vai ter o apoio de uma psicóloga para lhe ajudar com isso!
- Pis... Piscó... – não terminei, não consegui associar tudo – Vocês podem me deixar sozinha?
- É claro! – a enfermeira baixou a seringa – os analgésicos já devem estar fazendo efeito!
Até esse momento, não tinha percebido o efeito deles, mas agora que já não queria mais pensar no rumo que minha vida tinha tomado, nem na dor da minha enorme perda, (sem contar a dor que estava por vir). Em poucos instantes comecei a sentir meu corpo entorpecer.
Analgésico nenhum me ajudaria naquele momento, não existia analgésico para dor na alma!
Comecei a sentir a dormência se espalhar por todo meu corpo. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, eu já estava sozinha. Meus olhos finalmente vagaram pelo quarto. Mesmo zonza, pude ver que era um quarto amplo e confortável, obviamente de uma clínica particular. Meus olhos pararam no criado mudo ao meu lado, mais especificamente, no calendário.
- 16 de fevereiro...
Pelo que me lembro, viajamos no dia 10, então se passaram seis dias? Fiquei desacordada por seis dias? Nossa... O que aconteceu?
"Isso tudo é um pesadelo" pensei – mesmo tendo certeza de estar acordada – “Nem pude ver o enterro... Vê-los pela ultima vez...”
Como se fosse necessário! A imagem vinha na minha mente com muita freqüência, muita dor e nitidez. Quanto tempo levaria para esquecer isso?
Eu não queria esquecer meus pais, longe disso, mas queria esquecer o acidente, a dor... O olhar desesperado do meu pai... Essas lembranças ardiam no meu peito, trazendo à tona todo o desespero, todo o medo que eu senti naquela hora, mas não me trazia a lembrança do que eu queria: O que aconteceu nos últimos instantes naquele carro? Como eu sobrevivi? O que eu fiz? O que... Eu não conseguia raciocinar.
Minha mente começou a me castigar imaginado todas as possibilidades de “se” e “talvez”. Todas as chances que eu poderia me agarrar me dizendo que aquilo tudo não era real. E então, algo fez lembrar-me de Deus... Deus? Meus pais me ensinaram a ser uma pessoa religiosa, mas para que adiantou tudo isso?
“Deus – eu rezei – por que fez isso? Sempre fui uma boa filha, e o senhor me retribui tirand-os de mim? Por que senhor? O senhor não é tão bondoso? Onde estava sua bondade quando deixou que eles morressem?”
Não me veio nenhuma resposta (não que eu estivesse esperando ouvir um sussurro como resposta).
Naquele momento, deixei de acreditar na bondade de Deus.
Meu reflexo estava lento e aos poucos fui adormecendo sob choro e desespero...
E essa é a "experiência traumática"!

[...]

A primeira vez que vi minha avó, foi... Horrível. Ouvi uma voz reclamando do hospital vindo do corredor em direção ao quarto. Por instinto fingi que estava dormindo. Logo depois ela entrou com o médico atrás dela explicando a minha melhora. Percebi que ela ficou surpresa e reclamou com o médico por não ter informado ela sobre o dia em que eu seria suspensa do coma induzido.
Passei a maior parte do tempo que pude dormindo! (ou fingindo). Era mais fácil do que enfrentar a realidade. Não existia nada de bom na realidade.
Depois disso, passei mais duas semanas no hospital, com visitas frequentes da minha nova tutora – minha avó – e da Dra. Fisher. Eu continuava fingindo que estava dormindo quando elas chegavam. Ao término desses terríveis dias recebi alta do médico, com a promessa de repouso absoluto e uma caixinha cheia de analgésicos para aliviarem as dores pelos próximos dias.
Lembro-me que nesse dia de alta, não pude fingir estar dormindo. Mantive-me desperta, mas não troquei uma única palavra com minha avó ou com a psicóloga. Quando finalmente fui deixada sozinha por alguns instantes percebi que já conseguia me levantar. Vesti-me e aguardei sentada na cama até que viesse alguém me liberar.
Encontrei na mesa do canto, onde minha avó costumava ficar, uma pasta sobre ela. Lembro que foram entregues a ela por investigadores ou algo assim, ela tinha assinado alguns e manteve a pasta sempre com ela. Por sorte, ela havia saído do quarto para fazer o pagamento do hospital. Isso com certeza levaria um bom tempo – levando em conta o tamanho da conta. Como mente vazia é oficina do diabo, me permitir bisbilhotar, mas me arrependi de tê-lo feito.
Eram fotos do acidente, do carro totalmente em pedaços, da trajetória dele até o barranco, e dos corpos... Havia um relato do corpo de bombeiros junto e informava a posição das vitimas: meu pai e minha mãe na frente. Não fez sentido para mim “Será que minha lembrança estava equivocada?”
Havia uma passagem que dizia: “Marcas demonstram que a sobrevivente foi arrastada para fora do veículo...” Antes que eu pudesse ler o resto, eu ouvi passos na direção do quarto. Fechei a pasta e sentei-me na cama. Minha avó não percebeu nada, e deixei pra pensar nisso depois, por hora eu tinha outras coisas para pensar, como por que meus amigos não me visitaram. Nem nos dias que eu passei em casa ninguém apareceu!
Só vim saber o porquê dias depois. Ordens da minha psicóloga! "Assim vai ser mais fácil se despedir do seu país querida, vai se adaptar mais facilmente...". Realmente não sei o que se passa na cabeça dessa psicóloga. Ela está pirando pelo fato de eu ter absorvido os acontecimentos sem nenhum escândalo! Provavelmente ela se sentiria melhor se eu estivesse dando chiliques e cortando os pulsos! "Não precisa guardar seus sentimentos, é melhor botar pra fora agora do que explodir depois!" ela dizia. Mas eu não queria explodir! Será que isso é tão errado?
Minha avó esteve comigo o tempo todo me apoiando silenciosamente – ela não estava mais feliz do que eu – para ela foi mais difícil, eu imagino, perder a filha única... Nós não conversamos sobre o assunto, na verdade, não conversamos em momento algum e isso era bom! Eu não tinha o que dizer mesmo, e remoer a ferida, não ia ajudar!
No fundo, acho que ela também esperava meu ataque e não queria dizer nada que desencadeasse isso, quero dizer, já era difícil se tornar tutora de sua única neta, agora órfã, imagine com ela (eu) dando chiliques?
Nunca – nessas duas semanas – cheguei a me dirigir diretamente a ela. Sempre “A senhora...” Eu não sabia se deveria chamá-la de vó, avó, Catherine ou Sra. Roosevelt. Não ia arriscar uma abordagem errada. Eu sei que ela é minha avó e tudo mais, porém, para mim ela era uma completa estranha.
Voltar para casa naquele dia foi à coisa mais difícil que já tinha feito... A sensação de abandono que senti foi horrível. Como se estivesse chegando em casa e eles estivessem me esperando, mas sempre me voltava à memória de que ninguém chegaria mais aquele apartamento...

E a cada dia, penso no rumo que minha vida tomou.
O celular no meu bolso tocou. Não precisava olhar pra ver quem era.
- Alô... – murmurei sem ânimo.
- Onde você está?
- Caminhando na praia...
- Você quer me matar? Já ia ligar pra polícia! Você sabe como esse país é violento... Esse inferninho...
- Sim...! – interrompi – Eu sei! Desculpe-me, já estou voltando!
- Certo... Não demore!
Desliguei o celular. Olhei uma última vez para minha adorada Copacabana e caminhei para o edifício como quem caminha para uma prisão perpétua.
Ela não disse nada sobre a viagem. Havia um jogo de malas perto da minha cama e algumas peças minhas de roupa.
Eu não discuti, não reclamei, não gritei! Apenas segui sua vontade! Hoje arrependo-me de não ter me manifestado. Agora sei que me calar nunca foi a melhor saída.
Tomamos todas as providências para a minha saída do país. Todos os bens herdados por mim foram vendidos, excerto o apartamento. Foi um pedido meu, eu pretendia voltar a morar no Brasil, quando atingisse a maior idade. E obviamente o carro do meu pai que foi totalmente destruído, então só deu para vender o carro da minha mãe, a casa na praia, o sito em Bertioga, a lancha do meu pai e as ações da empresa.
Não perguntei o quanto isso rendeu. Decidi que deixaria por conta da minha avó – pelas despesas do enterro e do hospital. Ela fez questão de deixar claro que não precisava do meu dinheiro e que o mesmo foi para uma popança em meu nome. Para mim, não fazia diferença! Eu não queria saber de herança, contas particulares e qualquer outra coisa relacionada a dinheiro. Ninguém percebia que a dor de perder meus pais era horrível demais?
Eu não pensaria nesse dinheiro tão cedo. Minha avó recebia uma gorda pensão pela morte do meu avô – Um ex-militar general ou coisa assim – possuía uma bela casa e era dona de um colégio particular para crianças. Ela fez questão de enfatizar essa parte.
Isso só me fez temer ainda mais o que ela havia preparado para mim.
Eu realmente não queria sair do Brasil! Uma coisa era um intercambio onde sabia que poderia voltar para casa, outro era ir sem data para voltar. Colegial então? Não seria nada fácil! Penso o que eles achariam de uma brasileira? Eu seria a piada? Ou seria a atração principal? Nenhuma das alternativas era boa. Eu não queria ser o centro das atenções. Eu só queria ser... Invisível! Não deveria ser tão difícil, não é?!
Minha cabeça andava tão confusa... Muitas coisas para pensar e muitas deixadas para depois.

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