- Vamos começar querida?
Penso:
“Me chama de querida de novo, e eu pulo no seu pescoço!”
Respondo:
-
Claro Dra. Fisher!
-
Bom, comece falando de você...
“Para
quê? Você sabe tudo que tem para saber!”
-
Como devo começar?
-
Como achar que deve – ela apertou um pouco os olhos e fixou-os em mim – Com o
que considerar importante.
Seguiu-se
um silêncio. Ela continuava a me encarar. Isso era agonizante...
-
Bom... – decidi começar – Meu nome é Elizabeth Roosevelt. Tenho 16 anos. Sou
brasileira. Moro em Copacabana, Rio de Janeiro. E... Sei lá...!
-
Continue querida... É só dizer o que passar pela sua cabeça, seus
sentimentos... É fácil...!
“Seria,
se você parasse de me encarar com esses olhos minúsculos como se eu fosse uma
psicopata!”
-
Dra. Fisher... Isso está me enchendo! É o 5º encontro, e a senhora sempre pede
a mesma coisa!
Senti
a corrente de ar que passava pelo assustador escritório da Dra. Fisher arrepiar-me.
-
Bem querida, se está sendo tão incômodo... Vamos mudar a perspectiva! Vou te
fazer perguntas e você se preocupa apenas em respondê-las OK?
“É
pra isso que você é paga? Para encher meu saco?”
-
Ta! Pode começar!
Infelizmente,
agora sei o quanto me arrependo dessas palavras.
A
Dra. Fisher é uma mulher asiática, de estatura baixa, olhos minúsculos e
maldosos, cabelos “escorridos” – do tipo “a vaca passou a língua” – e curtos.
De acordo com sua parede de certificados, se formou em psicologia, é solteira –
eu diria encalhada – e para meu desagrado era um tanto... Eu diria “curiosa” e
persuasiva.
Não
que eu não goste da Dra. Alice Fisher – minha psicóloga – ela até que é legal,
mas o fato de me tratar como se eu fosse uma adolescente perturbada... "Você passou uma experiência
traumática, por isso vai ser assistida por mim. Não estou dizendo que você está
louca querida, apenas quero o melhor pra você!"
As
palavras dela no primeiro encontro – ou como temo em mencionar “primeira
consulta” – ainda remoem na minha cabeça.
Eu
nunca fui a favor de psicólogos. Particularmente nunca precisei de um. Sempre
achei perda de tempo e dinheiro (excerto para os doentes mentais, lógico). E
agora, estou sentada diante da melhor psicóloga – e a mais cara provavelmente –
de Copacabana.
-
Elizabeth! Está prestando atenção?
“Nem
um pouquinho!” pensei.
-
Claro que estou!
-
Muito bem... – continuou ela, explicando as vantagens da nova perspectiva que
ela usaria.
Sabe
quando você sabe que algo ruim está por vir, mas não acredita realmente que vá
acontecer? Pois bem, eu sabia por que tinha ido até aquele consultório, sabia
qual seria o assunto, e mesmo após tantas consultas, ainda queria acreditar que
ela me pouparia disso...
-
Elizabeth – chamou ela – por que não me diz como andam as coisas com você?
-
Hamm... – hesitei em responder – Está indo...
-
Como vai sua relação com seus amigos?
Geralmente,
nas outras consultas, ela deixava que eu falasse neles primeiro.
-
Não como antes, e nem poderia... – murmurei as ultimas palavras mais para mim
do que para ela.
-
Por que não? – perguntou como se não soubesse a resposta.
-
Hamm... Não é a mesma coisa sabe, estamos todos diferentes... – o que quer
dizer eu.
Ela
pareceu hesitar um pouco, por fim falou:
-
Isso é bom de certa forma... Levando em conta o que está acontecendo... Você
sabe o que eu quero dizer não sabe?
Veio
em minha mente, um flash de imagens que durou apenas um segundo, mas que foi
suficiente para trazer de novo aquilo.
-
Sei!...
-
Acha que vai conseguir lidar com isso?
-
A senhora sempre me faz essa pergunta!
-
E a senhorita sempre se esquiva dela...
Abaixei
a cabeça quase que por instinto.
-
Me diga Elizabeth, lembra-se daquela noite?
-
Realmente acha que eu conseguiria esquecer? – arfei.
-
Então sabe por que está aqui? Sabe o que aconteceu e o que vai acontecer agora?
-
Para com isso... – murmurei em baixo tom.
Ela
não parou. Eu já podia sentir meu peito ardendo e toda aquela dor latejar.
Havia algo de estranho nessa consulta. Por mais irritante que fosse, a Dra.
Fisher sempre deixava o caminho aberto para que eu falasse apenas o que me
sentia a vontade em falar, mas... Agora ela estava me pressionando... Não era
como ela costumava agir... E isso só podia significar que...
-
Não acredito! – exclamei – ela não vai mesmo fazer isso vai?
O
olhar dela mudou, como se estivesse aliviada em eu ter percebido.
-
Sinto muito Elizabeth... Ela não quer esperar mais!
Levantei-me
num salto com a notícia.
-
Quando? – perguntei encarando-a.
-
Amanhã de manhã!
-
Não acredito! Vocês tinham me prometido mais tempo!
-
Sei disso, mas você a conhece, ela não vai esperar mais!
-
Isso não é justo! Sabe o que está fazendo comigo?
Ouve
uma pausa e só se podia ouvir o som da minha respiração irregular.
-
Sim Elizabeth, sei o que isto vai lhe causar, mas estou de mãos atadas!
-
E você ainda se considera uma boa psicóloga?!
-
Como disse? – perguntou ela incrédula.
-
O que ouviu! Você sabe que é errado o que ela vai fazer e mesmo assim dá a
autorização que ela precisa? Sabe que é a pior coisa que podia me acontecer e
mesmo assim... Como pode? – me virei e fui em direção a porta, mas hesitei na
maçaneta – Como consegue dormir à noite?
-
Não consigo... – respondeu – Mas acredite criança... Não há alternativa!
- Imagino se você diz isso ao receber seu contracheque...
Foi
a ultima coisa dita antes de eu sair.
Deixei
as ultimas palavras dela pairarem no ar do consultório e em minha mente.
“Não há
alternativa!”
Realmente
não havia.
Tinham
me prometido um mês! E, em uma semana tinham descumprindo a palavra. Logo tudo
ficaria para trás!
Senti
a luz do sol tocar em meu rosto ao sair do prédio. Aquilo era terrivelmente
maravilhoso... Tão familiar e tão bom... E em menos de 24 horas seria extinto
da minha vida!
O
taxi estava esperando na porta do prédio como ela havia dito. Eu não podia me enfiar naquele carro e seguir.
Tinha que aproveitar a ultima vez! Aproveitar a brisa da praia de Copacabana,
um dia ensolarado na minha doce praia.
A
clinica ficava na Av. Ns. De Copacabana a dois quarteirões da praia, que a
alguns quilômetros a esquerda ficava meu condomínio, Edifício South. Dispensei
o taxi e fui caminhar na praia. Sentir a areia nos pés, a brisa do mar... Pela
ultima vez!
Você
deve estar perguntando, o que eu estava fazendo no consultório dessa doida. E o
que está prestes a acontecer comigo. Bom, em menos de 24 horas minha vida vai
mudar completamente. Vai se transformar em um inferno! Quem eu quero enganar?
Minha vida é um inferno desde daquela noite...
[...]
Duas
semanas atrás estávamos voltando de uma viagem de fim de semana, meus pais e eu.
Meu pai estava no volante, minha mãe, sentada atrás comigo. Era por volta das
21 horas. Havia chovido e a pista estava molhada... Eu não me lembro de muita
coisa, ficaram lacunas na minha memória... Estava tudo tão bem... De repente eu
vi um clarão de luz vindo da pista e meu pai se virou bruscamente me encarando
nos olhos. Sua expressão... Seu olhar... Ele estava aterrorizado, havia medo,
preocupação, desespero em seu olhar... O seu olhar... É uma das últimas coisas
que lembro antes de tudo escurecer. Lembro de ter ouvido um forte barulho, uma
espécie de estrondo. Algo me apertando, algo que me pareceu quente e depois
úmido, como sangue escorrendo pelo meu corpo. Seguido logo depois por um
barulho estranho, baixo e então, um impacto forte seguido de dor. Muita dor,
vinda de várias direções.
Por
mais que tentasse, não conseguia distingui-las. Não conseguia abrir meus olhos.
Foi tudo tão rápido e depois... Algo que não sei explicar. Havia uma luz nessa
escuridão, e... Bom, nada! Nada que me valha lembrar eu acredito e então, tudo
some de novo.
Quando
acordei já estava no hospital.
Ainda
sentia dor e estava levemente entorpecida. Tinha um médico e uma enfermeira ao
meu lado e dois homens engravatados – que depois vim descobrir que eram
assistentes sociais. Eles mantinham conversas paralelas sobre a sorte que eu
tive e sobre meu caso clínico. Pelo que pude entender, tive uma contusão na
cabeça, desloquei o ombro esquerdo, fraturei duas costelas, e tive inúmeras
escoriações. Mantiveram-me dopada por analgésico em coma induzido para que eu
conseguisse me recuperar. Haviam tirado os medicamentos que me induziam ao
coma, mas mantiveram analgésicos fortíssimos para aliviar a dor, mesmo assim,
uma leve dor ainda persistia em meu corpo.
O médico
fazia perguntas para testar meu raciocínio e de acordo com as respostas que eu
dei, estava tudo bem. Ele – Dr. Charles Ribeiro – comentava com os outros da
sala meu progresso nos últimos dias.
Quando
me enchi das avaliações clínicas e das conversas, fiz a pergunta que aparentemente,
ninguém queria responder.
Minha
boca estava seca e minha voz parecia que iria falhar, mesmo assim prossegui:
- O... –
limpei a garganta surpreendendo-me por ser tão ruim falar – Onde estão meus pais?
– meus músculos doíam a cada palavra.
Naquela
altura do campeonato, já imaginava que tinha acontecido um acidente. Se eu
estava daquele jeito, como eles estavam?
Ninguém
respondeu a pergunta, tornei a falar. Minha voz estava fraca e sem forças, se
quebrando nas palavras, mas a preocupação em meu coração era maior.
- O....
Onde eles estão? Eles estão bem?
Aquele
silêncio... Ouve uma troca de olhares entre o médico e os engravatados.
Tentei
me levantar da cama em busca de respostas e me arrependi no mesmo instante! As
minhas costas arderam como brasa, a dor que estava fraca intensificou.
Vendo
meu gesto, a enfermeira me segurou pelo ombro, impedindo qualquer movimento – desnecessariamente,
pois eu não pretendia me mexer de novo.
Eu já
estava irritada por todo aquele silêncio. Coloquei o antebraço nos olhos e os
fechei com força, desejando que tudo não passasse de um pesadelo.
- O
q-que aconteceu? – perguntei sob o fôlego.
Finalmente
alguém falou.
- Ouve
um acidente... – quem falou foi um dos engravatados.
- Não,
ainda não! – o médico interrompeu – Ela precisa se recuperar!
- Ela
vai ter que saber cedo ou tarde! – debateu o outro.
- Ainda
sim, o estado dela é estável, mas delicado, eu digo que...
- Tudo
b-bem... – minha voz estava quase indecifrável, agora que eu lutava contra as lágrimas
– pode dizer!
Mantive
meu braço no rosto evitando que vissem minha expressão. A enfermeira manteve a
mão no meu ombro mais para me consolar do que para me segurar. Agradeci aquele
gesto.
- Elizabeth
– começou um dos engravatados –, ouve um acidente de carro. Um motorista fez
uma ultrapassagem indevida e colidiu com o veículo dos seus pais. A pista
estava molhada, o carro derrapou e saiu da estrada caindo em um barranco.
Levamos horas para chegar ao local...
- Não é
o q-que eu quero saber! – eu o interrompi tentando soar o mais ríspida que
conseguir – Como eles estão?
- Eles...
– ouve uma longa pausa – Eles não conseguiram... Sinto muito!
As
lágrimas que eu tanto lutava, ganharam força e desabei num choro fraco e sem
vida, mas discreto. Tinha mais, a saber, naquele instante.
- C-Como...?
– eu precisava saber e não era preciso terminar a frase.
- O carro
explodiu alguns minutos depois de chegar ao fundo o barranco...
Tudo
estava girando. A dor agora queimava com força pelo meu corpo todo. O desespero
entalou na minha garganta. Nada fazia sentido. O meu peito ainda estava em
brasa. Não havia mais nada a que me segurar.
Na
minha cabeça, surgiam os rostos deles, aquilo me corroeu como ácido mais e mais.
A dor física não significava nada comparando ao que senti em meu peito. Tudo
tinha desaparecido! Meu chão desapareceu... Senti um começo de vertigem
e rezei para que ela não aumentasse.
- Por que
eu...? – resolvi dizer algo para não acharem que eu estava entrando em choque,
e certamente eu estava – Por que eu estou viva?
Se
tinha sido tão horrível, não fazia sentido eu ter sobrevivido. Ouve outra troca
de olhares.
- Nós
não temos certeza... – continuou o assistente social – É mesmo um mistério,
talvez tenha sido sorte...
- Esperávamos
que você se lembrasse. Você foi encontrada alguns metros longe do veículo e da
explosão! – completou o outro assistente engravatado.
- E... Eu...
Não me lembro... – disse entre fracos soluços e lágrimas.
- Bom –
falou o mesmo engravatado e o médico não ficou feliz por a conversa ter tomado
esse rumo – Pode nos dizer do que consegue se lembrar?
- Eu te
disse que ela precisava se recuperar antes que... – bufou o médico para eles.
- Não! Deixa...
– por mais que eu quisesse ficar sozinha e chorar pela... Morte dos meus
pais, era melhor acabar logo com isso do que ter que revirar depois – Eu estou b-bem,
quero falar!
- Tem
certeza querida? – a enfermeira persuadiu – não temos pressa!
- Tenho
s-sim! – eu me recompus um pouco e finalmente tirei a antebraço do rosto, mas
permaneci olhando para cima.
Busquei
no fundo de minha mente todos os detalhes que consegui.
Eu lhes
contei a mesma história que contei. A única de que me lembrava. Demorou um
pouco para colocar as informações no lugar, mas eles realmente não estavam com
pressa.
- Isso
já era esperado – refletiu o médico – você sofreu uma contusão grave na cabeça,
sem contar a experiência traumática, é normal que seu subconsciente se proteja
apagando as memórias ruins!
“Meu
sub o quê? Protegendo-me como?”
- Explique...
– pediram e pensei se só eu não tinha entendido.
- Hamm...
Bom as lembranças do acidente, devem ser dolorosas para ela! E seu subconsciente
se protege dessa dor, apagando as memórias. Não sou especialista nesse assunto
querida – dirigiu-se a mim – certamente você vai querer procurar um depois...
Como
imaginei, ele não fazia idéia do que estava falando, mas até que fazia sentido,
se estava doendo agora, imagina se eu começar a lembrar? Nesse instante eu não
queria saber de mais nada! Manter a compostura estava ficando difícil, eu
precisava ficar sozinha! Precisava desabar!
- Há algo
mais que v... Vocês queiram saber?
-
Bom... – soou a voz do engravatado.
- Não! Nadinha
– interrompeu o médico – pode descansar! Durma um pouco, a enfermeira vai lhe
aplicar os analgésicos, os outros já vão perder o efeito!
Percebi
que não tiraria nenhuma informação deles, nem eles de mim (se houvesse alguma) “Ótimo,
fim da conversa!" pensei.
Foi
quando me lembrei de um detalhe. Sou filha única. Não tenho tios nem tias, não
me lembro de nenhum parente próximo... O que ia acontecer comigo? Um orfanato? Não
poderia ser! Meus pais eram bem de vida, tinham economias. Não me deixariam
desamparada, deixariam?
-
Esperem...! – disse enquanto eles começavam a sair.
Foquei meus
olhos na enfermeira que estava aplicando analgésicos na mangueira ligada ao meu
braço. Ela me olhou e sorriu. O médico voltou seu olhar para mim. Voltei a encarar
o nada, o teto pra ser mais exata.
- O que
foi? – perguntou o médico.
- O que
vai acontecer comigo? Para onde vou? – o desespero soava na minha voz.
Apesar
de focar apenas o teto eu estava ciente de todos no quarto. A enfermeira ao meu
lado. O médico a dois paços da minha cama. Os engravatados logo atrás dele,
perto da porta que agora estava aberta. Muito bom para alguém que sofreu o que
eu sofri, não é? Talvez o meu estado não fosse tão ruim, talvez eu ganhasse
alta logo e tentaria seguir com minha vida... (como se isso fosse mesmo
acontecer...)
Finalmente alguém respondeu. Um dos
engravatados (não me preocupei em memorizar seus nomes).
- Tudo
já foi resolvido! Foi um tanto difícil, considerando que você não tem parentes próximos,
conseguimos contato com a sua avó materna...
- Minha
a... Avó?
Fiquei
chocada. Não me lembrava de ter visto minha avó além de fotos.
- Ela
ficou muito abalada – disse o engravatado – e embarcou para o Brasil no mesmo
dia! Foi ela quem cuidou do enterro e de todas as outras despesas!
- Onde
ela está?
Os
assistentes sociais alternavam entre si para responder minhas perguntas.
Aparentemente satisfeitos por terem conseguido cumprir seu trabalho.
- Ela
está cuidando da papelada sobre a sua guarda legal, mas ela ficou ao seu lado o
tempo todo!
“Papelada de
guarda? Vou mesmo morar com ela?”
Eu não me
lembrava muito da minha avó, Dona Catherine Munro Roosevelt. Viúva residente em
Santa Rosa, Califórnia, ao norte de San Francisco EUA. Lembro-me das histórias
contadas por minha mãe dizendo que ela não era a favor do romance dos meus pais
– porque minha mãe era norte-americana e meu pai brasileiro – mas conforme ela
o conheceu melhor, acabou engolindo apesar de não apoiar. Mas quando eles
vieram morar no Brasil, ela não manteve contato. Minha mãe não falava muito
dela, mas podia-se ver que ela sentia saudades... Quanto a mim... Mal me lembrava
de seu rosto...
ESPERA! Se eu
vou morar com ela de agora em diante, e ela mora fora do Brasil...
- Eu,
eu vou... Deixar o Brasil? – minha voz estava incrédula.
- Sim –
a voz do assistente social soou sarcástica – é a única alternativa! A não ser
que queira ir para um abrigo!
- Mas e
minhas coisas, m... Minhas amigas, m... Meu colégio? – que droga! Por que as
palavras tinham que sair quebradas?
- Vai
ser difícil, sabemos! – ele olhava fixamente em mim tentando passar sentimento
– Mas você vai ter o apoio de uma psicóloga para lhe ajudar com isso!
- Pis...
Piscó... – não terminei, não consegui associar tudo – Vocês podem me deixar sozinha?
- É
claro! – a enfermeira baixou a seringa – os analgésicos já devem estar fazendo
efeito!
Até
esse momento, não tinha percebido o efeito deles, mas agora que já não queria
mais pensar no rumo que minha vida tinha tomado, nem na dor da minha enorme
perda, (sem contar a dor que estava por vir). Em poucos instantes comecei a sentir
meu corpo entorpecer.
Analgésico
nenhum me ajudaria naquele momento, não existia analgésico para dor na alma!
Comecei
a sentir a dormência se espalhar por todo meu corpo. Antes que eu pudesse dizer
alguma coisa, eu já estava sozinha. Meus olhos finalmente vagaram pelo quarto. Mesmo
zonza, pude ver que era um quarto amplo e confortável, obviamente de uma
clínica particular. Meus olhos pararam no criado mudo ao meu lado, mais
especificamente, no calendário.
- 16 de
fevereiro...
Pelo que
me lembro, viajamos no dia 10, então se passaram seis dias? Fiquei
desacordada por seis dias? Nossa... O que aconteceu?
"Isso
tudo é um pesadelo" pensei – mesmo tendo certeza de estar acordada – “Nem
pude ver o enterro... Vê-los pela ultima vez...”
Como se
fosse necessário! A imagem vinha na minha mente com muita freqüência, muita dor
e nitidez. Quanto tempo levaria para esquecer isso?
Eu não
queria esquecer meus pais, longe disso, mas queria esquecer o acidente, a dor...
O olhar desesperado do meu pai... Essas lembranças ardiam no meu peito,
trazendo à tona todo o desespero, todo o medo que eu senti naquela hora, mas
não me trazia a lembrança do que eu queria: O que aconteceu nos últimos
instantes naquele carro? Como eu sobrevivi? O que eu fiz? O que... Eu
não conseguia raciocinar.
Minha
mente começou a me castigar imaginado todas as possibilidades de “se” e “talvez”.
Todas as chances que eu poderia me agarrar me dizendo que aquilo tudo não era
real. E então, algo fez lembrar-me de Deus... Deus? Meus pais me ensinaram a
ser uma pessoa religiosa, mas para que adiantou tudo isso?
“Deus – eu rezei – por que fez isso? Sempre fui uma boa filha,
e o senhor me retribui tirand-os de mim? Por que senhor? O senhor não é tão
bondoso? Onde estava sua bondade quando deixou que eles morressem?”
Não me
veio nenhuma resposta (não que eu estivesse esperando ouvir um sussurro como
resposta).
Naquele
momento, deixei de acreditar na bondade de Deus.
Meu
reflexo estava lento e aos poucos fui adormecendo sob choro e desespero...
E essa
é a "experiência traumática"!
[...]
A
primeira vez que vi minha avó, foi... Horrível. Ouvi uma voz reclamando do
hospital vindo do corredor em direção ao quarto. Por instinto fingi que estava
dormindo. Logo depois ela entrou com o médico atrás dela explicando a minha
melhora. Percebi que ela ficou surpresa e reclamou com o médico por não ter
informado ela sobre o dia em que eu seria suspensa do coma induzido.
Passei
a maior parte do tempo que pude dormindo! (ou fingindo). Era mais fácil do que
enfrentar a realidade. Não existia nada de bom na realidade.
Depois
disso, passei mais duas semanas no hospital, com visitas frequentes da minha
nova tutora – minha avó – e da Dra. Fisher. Eu continuava fingindo que estava
dormindo quando elas chegavam. Ao término desses terríveis dias recebi alta do
médico, com a promessa de repouso absoluto e uma caixinha cheia de analgésicos
para aliviarem as dores pelos próximos dias.
Lembro-me
que nesse dia de alta, não pude fingir estar dormindo. Mantive-me desperta, mas
não troquei uma única palavra com minha avó ou com a psicóloga. Quando finalmente
fui deixada sozinha por alguns instantes percebi que já conseguia me levantar.
Vesti-me e aguardei sentada na cama até que viesse alguém me liberar.
Encontrei na mesa do canto, onde
minha avó costumava ficar, uma pasta sobre ela. Lembro que foram entregues a
ela por investigadores ou algo assim, ela tinha assinado alguns e manteve a
pasta sempre com ela. Por sorte, ela havia saído do quarto para fazer o
pagamento do hospital. Isso com certeza levaria um bom tempo – levando em conta
o tamanho da conta. Como mente vazia é oficina do diabo, me permitir bisbilhotar,
mas me arrependi de tê-lo feito.
Eram
fotos do acidente, do carro totalmente em pedaços, da trajetória dele até o
barranco, e dos corpos... Havia um
relato do corpo de bombeiros junto e informava a posição das vitimas: meu pai e
minha mãe na frente. Não fez sentido para mim “Será que minha lembrança estava
equivocada?”
Havia
uma passagem que dizia: “Marcas
demonstram que a sobrevivente foi arrastada para fora do veículo...” Antes
que eu pudesse ler o resto, eu ouvi passos na direção do quarto. Fechei a pasta
e sentei-me na cama. Minha avó não percebeu nada, e deixei pra pensar nisso
depois, por hora eu tinha outras coisas para pensar, como por que meus amigos
não me visitaram. Nem nos dias que eu passei em casa ninguém apareceu!
Só vim saber
o porquê dias depois. Ordens da minha psicóloga! "Assim vai ser mais fácil
se despedir do seu país querida, vai se adaptar mais facilmente...". Realmente
não sei o que se passa na cabeça dessa psicóloga. Ela está pirando pelo fato de
eu ter absorvido os acontecimentos sem nenhum escândalo! Provavelmente ela se
sentiria melhor se eu estivesse dando chiliques e cortando os pulsos! "Não
precisa guardar seus sentimentos, é melhor botar pra fora agora do que explodir
depois!" ela dizia. Mas eu não queria explodir! Será que isso é tão
errado?
Minha
avó esteve comigo o tempo todo me apoiando silenciosamente – ela não estava
mais feliz do que eu – para ela foi mais difícil, eu imagino, perder a filha
única... Nós não conversamos sobre o assunto, na verdade, não conversamos em
momento algum e isso era bom! Eu não tinha o que dizer mesmo, e remoer a
ferida, não ia ajudar!
No
fundo, acho que ela também esperava meu ataque e não queria dizer nada que
desencadeasse isso, quero dizer, já era difícil se tornar tutora de sua única
neta, agora órfã, imagine com ela (eu) dando chiliques?
Nunca –
nessas duas semanas – cheguei a me dirigir diretamente a ela. Sempre “A
senhora...” Eu não sabia se deveria chamá-la de vó, avó, Catherine ou Sra.
Roosevelt. Não ia arriscar uma abordagem errada. Eu sei que ela é minha avó e
tudo mais, porém, para mim ela era uma completa estranha.
Voltar
para casa naquele dia foi à coisa mais difícil que já tinha feito... A sensação
de abandono que senti foi horrível. Como se estivesse chegando em casa e eles
estivessem me esperando, mas sempre me voltava à memória de que ninguém
chegaria mais aquele apartamento...
E a
cada dia, penso no rumo que minha vida tomou.
O
celular no meu bolso tocou. Não precisava olhar pra ver quem era.
-
Alô... – murmurei sem ânimo.
- Onde você está?
-
Caminhando na praia...
- Você quer me matar? Já ia ligar pra polícia! Você
sabe como esse país é violento... Esse inferninho...
-
Sim...! – interrompi – Eu sei! Desculpe-me, já estou voltando!
- Certo... Não demore!
Desliguei
o celular. Olhei uma última vez para minha adorada Copacabana e caminhei para o
edifício como quem caminha para uma prisão perpétua.
Ela não
disse nada sobre a viagem. Havia um jogo de malas perto da minha cama e algumas
peças minhas de roupa.
Eu não
discuti, não reclamei, não gritei! Apenas segui sua vontade! Hoje arrependo-me
de não ter me manifestado. Agora sei que me calar nunca foi a melhor saída.
Tomamos
todas as providências para a minha saída do país. Todos os bens herdados por
mim foram vendidos, excerto o apartamento. Foi um pedido meu, eu pretendia
voltar a morar no Brasil, quando atingisse a maior idade. E obviamente o carro
do meu pai que foi totalmente destruído, então só deu para vender o carro da
minha mãe, a casa na praia, o sito em Bertioga, a lancha do meu pai e as ações
da empresa.
Não
perguntei o quanto isso rendeu. Decidi que deixaria por conta da minha avó –
pelas despesas do enterro e do hospital. Ela fez questão de deixar claro que
não precisava do meu dinheiro e que o mesmo foi para uma popança em meu nome. Para
mim, não fazia diferença! Eu não queria saber de herança, contas particulares e
qualquer outra coisa relacionada a dinheiro. Ninguém percebia que a dor de
perder meus pais era horrível demais?
Eu não
pensaria nesse dinheiro tão cedo. Minha avó recebia uma gorda pensão pela morte
do meu avô – Um ex-militar general ou coisa assim – possuía uma bela casa e era
dona de um colégio particular para crianças. Ela fez questão de enfatizar essa
parte.
Isso só
me fez temer ainda mais o que ela havia preparado para mim.
Eu
realmente não queria sair do Brasil! Uma coisa era um intercambio onde sabia
que poderia voltar para casa, outro era ir sem data para voltar. Colegial
então? Não seria nada fácil! Penso o que eles achariam de uma brasileira? Eu
seria a piada? Ou seria a atração principal? Nenhuma das alternativas era boa. Eu
não queria ser o centro das atenções. Eu só queria ser... Invisível! Não deveria ser tão difícil, não é?!
Minha
cabeça andava tão confusa... Muitas coisas para pensar e muitas deixadas para
depois.